Soneto 18
É
preciso admitir, diria mais, é preciso admitir e aceitar quando se é vencido,
seja por que força for.
Dias
atrás, sentado em um banco de uma praça qualquer, assistindo a vida passar da
mesma forma que ali o sol mostrava que inevitavelmente os dias passam, o tempo
corre, a vida se escoa lentamente entre nossos dedos, forçosamente comecei a
ouvir a fala de um homem de meia idade, talvez com seus 40 anos, que tinha como
ouvinte uma Sra., que nitidamente já havia perdido muito da areia da nossa
ampulheta que a vida nos dá. E o assunto, ainda que eu não tenha tido intenção
de invadir aquele diálogo, que mais era um monologo, me prendeu ao ouvir que
ele falava sobre o Bardo, e parecia de fato conhecer sua obra, pois ela estava
muito além da mais famosa obra escrita, onde Julieta se mata juntamente com seu
amado porque suas famílias eram inimigas e tal amor não era só proibido, mas
impossível de se realizar e viver. Dizia ela que havia ido até uma papelaria –
uma palavra que nos dias de hoje de email, internet, algumas pessoas mais
novas, se quer sabem o que se vende ali, e havia escolhido de papel e um
envelope na cor bordeaux – como bem
disse ele à sua ouvinte: “afinal, é preciso ter cuidado com os detalhes, e ela
merecia o meu tempo em ir até a papelaria, escolher o papel exato e a cor exata
do envelope”, onde a Sra. o interrompeu dizendo que na “minha época esperávamos
literalmente o carteiro passar em nossa casa, com a esperança de que alguma
carta havia sido nos enviada, mas hoje dizem que se pode fazer isso – entendi o
que ela dizia claramente – mandar uma carta por computador”, e ele seguindo
após esse breve e gentil interrupção da sua ouvinte, dizia “e me sentei à minha
mesa, peguei minha melhor caneta para que a minha letra tão ruim, não fosse tão
ruim e fosse a melhor que eu conseguisse impregnar no papel aquilo que eu tinha
a dizer, e mesmo que fosse urgente o que eu tinha a dizer, podendo enviar um
email – eis a óbvia explicação da carta enviada pelo computador, que à ela
soava muito estranho – eu quis que ela soubesse que eu retirei do meu tempo
naquele dia, um momento especial, em ir até a papelaria, escolher o papel e a
cor exata do envelope e colocar em palavras o que estava me sufocando quase de
morte”. Não pude mais deixar de não ouvir, e creio, quase tenho certeza, me virei
para eles que estavam sentado em um banco grudado ao meu. Na posição na qual
nós três nos encontrávamos, eu estava de frente para eles, e pela proximidade
não só podia ouvir suas palavras, ditas ainda que com um tom de auto deboche,
soavam através dos seus olhos, como uma lamentação por uma perda definitiva: os
olhos dele, não eram amargos, não tinham brilho, tinham sim uma profunda
consternação e até mesmo, isso aos meus olhos, uma dor profunda sendo contida
com um sorriso falseado. E dizia ela, para aquela Sra. já com muito menos tempo
pela frente do que o tempo que ela já havia deixado para trás, que o ouvia com
um olhar de ternura e simpatia, ainda que fosse, pelo o que notei e ficou claro
depois, serem dois completos estranhos, conversando pela primeira vez ... e
dizia ele que, após ter feito toda esse ato, que segundo ele mesmo disse,
soaria até ridículo, "eu um homem adulto, indo comprar papel e envelope,
sentando e escrevendo uma carta de amor, indo até os correios e me sentindo um
tanto quanto desconfortável, diria constrangido ao ser atendido por uma garota
que demonstrava em seu rosto, não ter nem a metade da minha idade, o seu olhar
de espanto em ver que se tratava não de uma carta comercial, mas uma carta, dessas
que ela, a atendente nunca deve ter escrito em sua vida, e até mesmo recebido”,
e eu preso ali a aquela história que não era minha mas a furtava de forma quase
descarada, primeiro tendo sido atraído pelo nome do Bardo e depois ter me
envolvido naquela conversa, ainda que tão somente como telespectador, pelo
conhecimento daquele homem sobre o Soneto 18. A Sra. não o interrompia, antes,
só o ouvia e com sinais dados pela cabeça, de aprovação, de reprovação e os
claros sinais que nossos olhos transmitem, o ouvia com atenção e até mesmo carinho.
E continuava ele a dizer, “e pus naquelas três folhas o que eu sentia, e o meu
pedido claro em fazer parte da vida dela, e juntei ao final o Soneto 18 de
Shakespeare, para que ela o lesse e tivesse, ainda que só através de letras
conectadas, de papel, a real dimensão do meu mais profundo e verdadeiro
sentimento”. A tal Sra. disse que desconhecia tal Soneto, e mais, disse que
pensava que Shakespeare fosse só autor de livro de histórias, e de forma solene
e gentil, ela disse, “perdoe a minha ignorância sobre o Soneto 18 do qual está
falando”. E ele, demonstrando uma memória prodigiosa, o declamou ali para
aquela sua ouvinte, sem errar uma só palavra ou letra: digo isso, pois eu
conhecia também o Soneto 18 de Shakespeare, dos mais de 100 Sonetos escritos
por ele. Naturalmente, ele declamou tal Soneto em nossa língua e não em Inglês,
e ainda que em nossa língua, havia uma clara dificuldade, há, de se compreender
as palavras redigidas sob rígida estrutura, por ser um poema escrito há mais de
400 anos, ainda que ditas em nossa língua. E o que poderia ter sido um problema
para o falante em relação à sua ouvinte, antes, resultou em uma maior atração.
Ela se reclinou um pouco mais em direção à ele, o interrompendo, novamente de
forma terna, falando que antes “se falava mais bonito, e quando fui menina e
estudava com as freiras” – não me guardei de qual escola ela falava – “
tínhamos aula até de latim e usávamos a mais correta possível forma do nosso
tão massacrado português nesses dias de cartas de computador”: entendi que o
Soneto 18, sendo por ele declamado, era na versão traduzida tendo como destinatário
uma mulher, pois Shakespeare não diz para quem são as palavras, se para um
homem ou uma mulher, como se dissesse de forma brilhante, como sempre o fazia
em suas peças e em seus sonetos, que o que era por ele dito poderia vir a ser
dito de um homem para uma mulher ou de uma mulher para um homem, pois
tratava-se de algo universal. E continuando ele, nós ali naquela praça já agora
sobre a falsa luz dos postes por já ser escuro por mais uma volta nossa ao
redor do sol, tendo declamado o Soneto 18, o que ele havia enviado em um papel
escolhido dentre vários, e não um papel qualquer comprado em uma resma, e “tendo
escolhido um envelope com a cor que ela dizia que era sua favorita, enviei, e
tendo enviado, voltei aos meus 15 anos, quando escrevia cartas para amigos e
amigas, e depois aguardava dias pelo carteiro com a resposta em suas mãos, e
passei a esperar que o tempo natural da carta se fizesse”. E eu cada vez mais
curioso com aquela história, de um homem de meia idade, olhar triste, guardando
dentro de si dores, que ainda que tentemos falsear escondendo com sorrisos pré
criados, somos denunciados pelo olhar, não liguei mais se invadia ou não o
diálogo dos dois e passei realmente a interagir, ainda que sem interação alguma
além dos meus olhos e toda a minha intenção, com aquela história. E pensei, que
homem estranho esse, ir até uma papelaria para comprar papel, e não só isso,
escolher o tipo exato, como ele havia dito exatamente com essas palavras, e
escolher um envelope vermelho, uma vez que conhecia a palavra bordeaux e sabia que significava algo da
cor de um vinho tinto, literalmente, escrever uma carta de amor, e nela colocar
um dos mais belos dos mais de 100 sonetos do Bardo, enviar e esperar que a
carta chegasse – segundo ele mesmo contava para sua ouvinte – atravessando metade
do país para chegar nas mãos de uma mulher, quando ele poderia simplesmente
fazer uma ligação do seu celular ou mandar um email. A tal Sra., ouvindo cada
palavra do seu falante, como eu mesmo o fazia agora, mudou sua expressão,
quando ele continuou falando... “e depois de mais de uma semana, de agonia,
esperando que as essas palavras pudessem demonstrar todo meu afeto, carinho e
amor por ela – citando o começo do Soneto, novamente – “”Se te
comparo a um dia de verão, És por certo mais belo e mais ameno...”” “ela em uma
ligação de menos de 2 minutos, na qual toda a sua ternura de antes, onde
cuidava até em escolher as palavras para falar comigo, e juras de amor e
construção conjunta de sonhos, me disse que se quer havia lido tal carta, que
havia rasgado sem lê-la, e que não acreditava e tão pouco se importava se o que
eu dizia, era verdade ou não, mas que era pra eu seguir a minha vida pois
jamais iríamos ficar juntos”. Seus olhos, os mesmos que antes tinham dor e
sofrimento, mas ainda estava secos, marejaram e sua voz se tornou mais baixa. Mesma
reação teve a Sra. em seus olhos. A mim, ainda que soasse estranho a história
de mandar uma carta... quem manda cartas tendo email afinal? quis mais do que
nunca saber o final daquela história, que só peguei a metade. E ele, agora
falando com uma voz desnuda de máscaras ou fingimento, ali para aquela
estranha, e ainda que não fosse sua intenção, para mim também, falava mais
pausadamente e com pesar. “Quando ela me disse que não acreditava em mim, ainda
que eu tivesse sido tão honesto e sincero com ela, ainda que eu tivesse tentado
ser o melhor possível para ficar com ela e merece-la, merecer o seu amor, que não
se importava se o que eu dizia sentir fosse verdade ou não, pois para ela o que
antes era uma certeza de vida ao meu lado, e como eu, era o seu desejo de ser o
meu dia a dia, já não pensava mais assim e portando, com Soneto ou sem Soneto,
com carta ou não, não iríamos ficar juntos”. Ele parou, desviou o olhar para o
chão e por algum instante, nenhum de nós falou nada, eu obviamente por ser um
intruso ali naquela história, e a Sra. com os olhos voltados para o tal homem
da carta escrita à mão em papel escolhido guardada dentro de um envelope na cor
bordeaux, como se fosse íntima dele,
estendeu sua mão, enrugada pelos anos, e de forma muito suave a colocou sobre
as dele que estavam em posição de quase oração, juntas com os dedos
entrelaçados. E aquela cena, ali naquela praça, onde tantas pessoas passavam,
voltando do trabalho, indo para alguma aula, se exercitando em aparelhos dispostos
como se fossem uma academia à céu aberto sem mensalidades, tornou-se para nós três, eu como
intruso, ele como o narrador e ela como a ouvinte, um quadro em minha mente,
onde tudo ao redor acontecia mas não era por nós se quer percebido. E aquele
instante, que dependendo do ponto de vista, durou segundos, ou durou horas, foi
novamente interrompido o silêncio através da voz dele. “Eu pensei, que fosse
amado por ela, pois ela me dizia, e pensei que fosse amado por ela da mesma
forma que ainda a amo, mesmo tendo passado tanto tempo desde essa fala que me
cortou não só o meu coração que antes se alimentava não mais tão somente de
sangue, para com isso nutrir meu corpo, mas se alimentava, me alimentava dela,
do seu amor, do seu carinho e cuidado, do seu olhar que me mostrava que ali
estava o que eu sempre havia buscado por toda uma vida. Eu pensei que a tal
carta que tanto espanto despertou na garota do correio ao ver uma carta não
comercial sendo enviada para um lugar tão distante de onde eu estava, emprestando
as palavras de Shakespeare, eu pudesse tê-la novamente e pudéssemos seguir
juntos na vida. Mas não foi isso que aconteceu”. A Sra. agora com um tom na voz
que passava carinho e até mesmo uma proposital atenção quanto a história do
homem do envelope bordeaux com o
Soneto 18, disse simplesmente. “Às vezes é preciso aceitar que não irá
acontecer, e que ainda que tenhamos dado o nosso melhor para o outro, não há garantia
alguma de retorno, e se você meu filho fez o seu melhor, orgulhe-se disso. Se
tais palavras desse poema que me recitou e eu desconhecia, mas que conheci através
de você aqui agora nesse banco de praça, que falam de amor puro, de promessas
de amor até o fim não foram suficientes, a culpa não é sua. Cada um de nós, e
posso falar isso já mais perto da morte do que da vida, com meus 86 anos,
escolhe o caminho que irá trilhar e sempre, acredite – ela agora segurando de
forma firme nas mãos do narrador – sempre pagamos pelas nossas escolhas, boas
ou ruins. Na vida não há nada de graça. Ela fez a escolha dela e não aceitar o
seu amor, como antes lhe dizia, como me disse, que o aceitava e alimentava e
dele também se alimentava, foi a escolha dela, e pode ser que você jamais venha
a saber por qual até quais motivos. Não se martirize, não deixe que a morte
desse amor lhe mate por dentro ainda que siga vivendo. Se você deu o melhor de você
para ela, orgulhe-se disso. Mas aceite que as vezes nem com as mais belas palavras,
assim como essas desse seu Soneto 18, e com as mais puras e claras intenções, se
consegue chegar e ficar no coração de uma pessoa.”
A título
de explicação e por realmente gostar desse Soneto, que até foi musicado por
David Gilmour, um dos 4 do Pink Floyd, transcrevo aqui no original em inglês e
a tradução feita tendo como destinatário uma mulher (por ter sido enviado pelo
homem da carta escrita à mão e fechada em um envelope de cor de vinho) e sua
versão em português. (em uma tradução que não é minha), lembrando que se trata
de um poema (algo que é muito complexo de ser traduzido) e escrito há mais de
400 anos.
Sonnet 18
Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate.
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer's lease hath all too short a date.
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimmed;
And every fair from fair sometime declines,
By chance, or nature's changing course, untrimmed;
But thy eternal summer shall not fade,
Nor lose possession of that fair thou ow'st,
Nor shall death brag thou wand'rest in his shade,
When in eternal lines to Time thou grow'st.
So long as men can breathe, or
eyes can see,
So long lives this, and this gives life to
thee.
Soneto 18
Como hei de comparar-te a um dia de verão?
És muito mais amável e mais amena:
Os ventos sopram os doces botões de maio,
E o verão finda antes que possamos começá-lo:
Por vezes, o sol lança seus cálidos raios,
Ou esconde o rosto dourado sob a névoa;
E tudo que é belo um dia acaba,
Seja pelo acaso ou por sua natureza;
Mas teu eterno verão jamais se extingue,
Nem perde o frescor que só tu possuis;
Nem a Morte virá arrastar-te sob a sombra,
Quando os versos te elevarem à eternidade:
Enquanto a humanidade puder respirar e ver,
Viverá meu canto, e ele te fará viver