Pontes para Argentina
PRIMEIRA PARTE
ZONA DE CONFORTO EM GOTAS
CAPÍLULO I
Já são quase 17h e só agora acordo. Às vezes durmo
mais de 20 horas seguidas, às vezes a droga ainda faz efeito, mas cada dia
mais, dia após dia, ela faz menos efeito, e cada vez mais preciso aumentar a
dose. Agora espero só que o sol se ponha para que eu possa me drogar novamente
e simplesmente tentar fugir de tudo isso. Uma fuga desesperada de tudo que sou,
do que me tornei por minha culpa, do que poderia ter sido se não fosse minha
culpa. Ainda restam alguns minutos de luz para que a droga faça um efeito
maior: entendi que durante o dia é mais difícil conseguir me entorpecer do que
à noite. Aprendi a me dopar e a ajudar a droga a fazer um efeito maior e mais
imediato: realmente a prática leva a perfeição. Desenvolvi um coquetel onde em
poucos minutos – por vezes até mesmo esses poucos minutos é tempo demais – me
levam pra longe de mim mesmo. Mas não posso dizer que seja um sono
confortavelmente entorpecido, como diz a música que ouço sem parar. Antes é um
sono ruim, onde quase nunca sonho, algo raro. Um sono pesado, dopado, que quase
sempre me traz pesadelos e não sonhos, onde meu subconsciente não fala, grita,
e grita tudo aquilo que do que eu tento fugir. No final de forma consciente eu
busco o meu inconsciente para me dizer sem que eu peça o que eu não quero
ouvir, pois já sei de cor. Ou é pura covardia em viver e encarar a vida.
Mas outras vezes não funciona. Por mais que eu me
dope, que eu aumente a dose em níveis perigosos há tanto barulho dentro da
minha cabeça que é impossível dormir. São noites de martírio, de culpa, de
pensamentos que não fazem sentido a não ser dentro da minha cabeça sem rumo,
perdida em tantos caminhos errados. Por fim com tanta droga ingerida, não
durmo, mas fico em um estado de latência vagando pela casa, esperando o dia
chegar como agora.
O suicídio me ronda constantemente, lentamente ele
se torna um amigo quase inseparável. É a vantagem de não se acreditar em um
D’us, em céu, punição, em inferno, em ajuda divina, afinal depois de tudo,
seria impossível acreditar que existe um ser acima de tudo que olhe por nós,
que poderia simplesmente evitar tanto sofrimento de tantas pessoas e
simplesmente não o faz, por puro sadismo ou por um ego tão gigantesco quanto à
dimensão que aqueles que nele creem dão, que só ajuda se forem seus adoradores,
e quase sempre nem assim: um D’us, novamente como desde sempre pela humanidade,
criado com características humanas, o que não faz sentido algum. Mas ainda sim
invejo aqueles que acreditam em tudo isso, que se convencem dos seus mistérios,
que contam pra si mesmo a maior mentira de todas: a que somos incapazes de
entender seus desígnios e caminhos, que somos livres mesmo sendo escravos desse
D’us punitivo, egocêntrico, sádico até. Eles conseguem através dessa adoração
sem nexo e nem sentido um perdão a si mesmos, um alento as suas dores, uma
esperança na qual há muito eu já perdi. Gostaria de ser ignorante, no lato
sentido da palavra: não há nada mais libertador do que a ignorância: não se
deseja não se busca respostas e quando não as encontra se atribui a sua própria
incapacidade de entender um plano maior. São felizes os ignorantes. Aqueles que
não viram o que a vida pode de fato dar e, portanto não sofrem por não terem.
Padeço da falta dessa tão acalentadora ignorância.
Como o bêbado do bairro, que mendiga pelas por
poucas ruas, que dorme ao relento, o suicídio está sempre presente em minha
mente. E novamente como o bêbado mendigo, às vezes passa dias sem ser visto e
só após certo tempo se nota que ele não está mais ali onde costumava estar, mas
sempre volta, sempre está em sua esquina esmolando, bebendo até cair. Sempre me
ronda, indo e vindo. Quase sempre é a saída mais fácil, alguns dizem, mas quase
sempre é a saída mais difícil para outros, mas sempre é uma saída. Horas
passadas pensando em como fazer, em como seria, no meio mais indolor, mas
sempre com pensamentos indo e vindo feito o bêbado.
Nesse exato momento, a janela fechada, já alta
madrugada – não sei dizer as horas – já dopado, mas mais uma vez não
completamente e confortavelmente
entorpecido por tanto barulho dentro da minha cabeça, tento colocar em
frases, em palavras que talvez não façam sentido algum para quem um dia as
possa ler, o que está me ensurdecendo de tão alto que ouço. Há duas músicas,
agora uma que condiz e traduz toda essa loucura e falta de rumo, e uma delas
toca sem parar, repetindo como um disco antigo que chega ao fim e retorna ao
ponto de início.
Vago na imensidão do Pacífico, sem leme, com velas
rasgadas, solitário mais uma vez, sentido muito frio, mas sem sentir
desconforto: o desconforto maior está dentro de mim. Vejo que tenho pouca água,
quem sabe dure mais um mês, ou menos, e comida suficiente para menos de dez
dias.
Sempre há um começo para tudo, um ponto onde tudo
muda, mas raramente nos damos conta disso. Hoje eu sei qual foi esse ponto,
esse meu ponto que me levou a me dopar dia após dia, buscando fugir de uma dor
insuportável, que aos olhos dos outros não é nada, é algo bobo, passageiro,
fraqueza. Hoje sei quando foi esse meu ponto sem volta. Foi quando eu vi a
Argentina e ela de vez entrou na minha vida. Será que as pessoas sabem que ela tem
predominantemente duas cores? O branco e um azul intenso que traga lentamente
como se fossem os olhos da própria Capitu? E ela é assim em suas cores. Ela foi
o começo de tudo que hoje desmorona ao meu redor. Você foi uma das poucas
privilegiadas – há outro verbo que não privilégio? – a conhecer, e só você sabe
do que eu estou falando. Quantas vezes ao longo desses anos todos só você soube
ou conseguiu entender o que eu dizia, falava e sentia.
Mas sou um eterno atrasado, me falta a pontualidade
inglesa, sabe bem disso, e me sobra o pagamento por tais atrasos em compreender
a tempo o que de fato é importante e único às vezes. Sabe bem o que minha vida
teria sido junto dela, ao lado dela, com todo aquele azul e branco, em terras
tão distantes e únicas, com sua exclusiva ludicidade que ela era em mim e eu
provocava nela como jamais ela, tão pouco eu, havíamos tido.
Ela foi a única que você de fato quis se aproximar
e conhecer, e isso por si só já deveria ter sido um claro sinal pra mim, pois
você sempre soube o que era melhor pra mim, sempre soube me mostrar o norte
correto e me falar do seu jeito tão único, suave e doce, que eu deveria
corrigir o rumo da proa. Ademais, você sempre se cercou do que há de melhor.
Mas cego por essa doença que já faz parte do que sou há 20 anos, ou
simplesmente cego pela imaturidade, pelo ego, pela falta de empatia aos
sentimentos dos outros eu não entendi, eu não enxerguei que era junto da
Argentina que minha vida deveria existir, e acima de tudo, viver e não
sobreviver como faço agora rodeado pelo meu constante amigo ceifador de vidas e
aliviador de dores da alma, ainda que eu não tenha uma, agora nessa volta final
de mais uma perfeita volta da vida.
Eu, você, sabemos o quanto ela tentou, o quão ela
lutou para que eu enxergasse isso, mas nós dóis sabemos o quanto eu desprezei
cada esforço, cada palavra que ela me disse, e o quanto eu a fiz sofrer. Nem
mesmo Dante em sua Comédia teria tido tanta inspiração para descrever toda dor
e infortúnio que eu a fiz padecer, e ela por anos, de forma estoica, suportou e
continuou tentando. Não sou hipócrita. Acredito que seja um dos poucos defeitos
que me faltam, então desta forma, você sabe bem, que não se tratava de testar o
limite da força do amor dela por mim, como sempre faço a fim de saber se é real
ou pura ilusão. Sei o que fiz: menosprezei, não cuidei do jardim que ela tanto
tentou cultivar, não valorizei a única razão que se há para viver, o amor, o
amor que ela sentia por mim e sentia de forma incondicional. Ela me viu, ela me
enxergou e viu quem eu de fato era, e ainda sim quis ficar e quis pagar o preço
para estar comigo, mas fui mais forte, sendo mais fraco, e consegui destruí-la
e destruir esse amor. Não devo pagar por isso? Sabe que sim! Ainda que ela
mesma jamais tenha me cobrado tal fatura. Mas a vida – aos 40 anos já é hora de
saber algo além de me vestir, me barbear sozinho – e sei que a vida sempre
cobra, ainda que sob e sobre a forma de outras pessoas. Fui míope, fui mais,
fui cego a tudo que a Argentina teria sido na minha vida, e o que ela já era na
minha vida. Sou digno e não me eximo de pagar por isso, ainda que me custe à
própria vida. Dante estava errado quando criou sua obra. Virgílio não precisava
vagar literalmente em busca de Beatriz que se encontrava no paraíso, tão pouco
precisava ter passado pelo purgatório, onde aqueles que pecaram podem ter uma
chance de terem seus pecados expiados, remidos e se tornarem dignos de entrarem
no paraíso. Mas de certa forma acertou ao criar o inferno. Sim, ele existe. Não
como querem os crentes, sejam eles de quais religiões forem. Ele não é formado
como descreveu Dante por nove círculos descendentes, onde a cada círculo mais
abaixo a dor e o sofrimento aumenta de forma exponencial, de acordo com o
merecimento do pecador. Não é necessário desencarnar para se adentrar ao
inferno e tão pouco são somente nove círculos descendentes. Em vida se entra no
inferno e dentro dele há dezenas, centenas e talvez milhares de corredores sem
fim onde a própria consciência se torna o inferno de cada um. Dentro dele,
incapazes de escapar, pagamos pelo o que fizemos ao outro, a nós mesmos, ainda
que em raras vezes não tivéssemos como não pecar, errar, mas hoje, e tão
somente hoje, sei que sempre há como não deixar que o jardim que alguém tenta
cultivar, que o amor que alguém nutre, seja maltratado, relegado, desprezado
até. Mas novamente chego atrasado, um atraso de anos, e o tempo ainda que possa
ser parado pela gravidade, não pode ser por nós.
Dentro da consciência, dos corredores infinitos que
nos perdemos, que nosso subconsciente nos traz a tona durante o sono – sono
esse falso, feito através de drogas cada dia em doses maiores – e nela que vivo
aprisionado, me torturando de forma quase masoquista e eternamente judaica,
pelo o que fiz, buscando em cada lembrança guardada e até mesmo escondida, todo
o mal que causei a ela. Não há perdão.
E foi por tamanha dor em ver o que havia perdido me
dando conta lentamente, a conta gotas o que havia de fato feito a alguém que
nunca em momento algum teve uma única palavra, uma única ação de rancor, raiva,
desprezo ou agressividade contra mim, que passei a me drogar, buscando
desesperadamente dormir e abafar essa dor, esse remorso.
Não serei sutil e tão pouco hipócrita em não
admitir que seja sim um viciado e cada dia me vicio mais e mais, buscando com
isso fugir da minha realidade, buscando fugir de pensamentos que me
atormentavam e como um ciclone giravam sem parar dentro da minha mente, num
perfeito surto límbico me prendendo a fatos, realidade, pensamentos, devaneios
que não me deixavam saída. Assim os anos foram passando, e noite após noite,
raras foram as que não recorri a essa droga para simplesmente parar de pensar,
você sabe disso.
Capítulo II
Não sei se te contei – cada vez mais minha
realidade se mistura a um surto dopado onde por vezes não distingo um do outro
e minha memória falha – que dias atrás acordei tendo a porta esmurrada.
Dopado, não entendia o que se passava. Tateando
tentei acender a luz do quarto, mas não encontrava o interruptor. Nu sem me dar
conta de tal fato, finalmente abri a porta e uma luz de lanterna foi
direcionada para meu rosto, sobre meus olhos ainda semicerrados, dopados, sem
entender se era sonho ou a realidade.
CAPÍTULO III
Segundo o médico, pode ser que preciso ser operado.
Ele mesmo disse que nem iria fazer o exame necessário ali no consultório, pois
eu não iria suportar a dor, mas nitidamente a ferida era grande e se estendia
corpo adentro. Me perguntou sobre várias coisas, sobre minha alimentação,
etc... mas nada do que eu lhe disse pra ele seria motivo de tal ferida, tão
pouco havia motivos aparentes para ela. Sei que quase sempre é insuportável a
dor, e nem deitado ou sentado, ou até de pé consigo alívio. Temi que pudesse
ser algo muito mais grave do que havia pensado quando entrei no consultório
depois dele me falar que se a ferida não cicatrizasse seria necessário uma
cirurgia e uma biópsia, pois poderia ser algum tipo de câncer. Me veio meu pai à
mente. Nunca fumei, nunca bebi, tirando as vezes que nós dois resolvemos tomar
algum porre de tequila, onde eu sempre acaba apagado na terceira dose, mas até
lá, ríamos mais do que o de costume, um do outro, dos outros, de nós mesmos. Sempre
me lembrava que segundo a Argentina, marguerita era bebida de mulher, e que eu
deveria parar de tomar em público, pois meu jeito já me condenava e com a
bebida seria então uma confissão absoluta de viadagem.
Me prescreveu uma medicação pra dor que passei a
tomar diariamente, que me aliviava por algumas horas, mas que era insuficiente,
e dia após dia a ferida persistia e sangrava. E também me indicou uma melhor
alimentação, mas pensei comigo mesmo que já tomo tanto cuidado com o que como
ou não. Foram nove meses, quase exatos de uma dor quase insuportável, rezando
para que morfina pudesse ser vendida sem tanta burocracia e que assim eu
pudesse suportar o corte que me fazia literalmente sangrar diariamente, quase
com hora marcada. Sei que se lembra o quanto sofri, pois me lembro o quanto
tentou cuidar de mim.
Mas da mesma forma que a ferida que sangrava com
hora marcada, que me impedia de andar, e até mesmo de me deitar veio, se foi. Sem
explicações, sem qualquer outro tipo de tratamento médico ou até a temível
cirurgia e o receio de vir a ter câncer que havia levado meu pai com apenas 52
anos. Não me lembro quando foi que acordei e não senti mais dor e vi que não
havia mais sangramento e tão pouco a ferida que me rasgava de fora para dentro,
sei que ela se foi. Por fim entendi o que se passava comigo. Você me conhece tão
bem, sabe que sou um menino ainda na fase dos 6, 7 anos que a tudo pergunta o porquê.
Por vezes o corpo nos faz sofrer com doenças criadas por ele mesmo, pois a dor,
ainda que in casu fosse quase
insuportável e por vezes insuportável, para nos poupar da dor que existe em
nossas almas, em nossa mente.
Me pego chorando, como agora, com coisas simples,
com lembranças pequenas, com detalhes insignificantes. Um choro de dor, que não
busco mais conter.
Sim, já vivi mais da metade da minha vida, mas ainda assim o
choro que sinto e sofro é de uma criança que foi deixada para trás por sua mãe
em algum lugar escuro, desconhecido, completamente só, mesmo em meio a essa
multidão que passa por mim, mas sem me notar. Há uma dor que é ainda maior do
que a que antes a ferida aberta e nunca fechada nem cauterizada provoca. Nesse
momento não tenho nada além de dor, lembranças, remorso, solidão e uma verdade:
de que estou só. Completamente só, e nem mais você que jamais pensei que um dia
pudesse me deixar, se foi.
Deixo essa dor, esse sofrimento, que não sei se
mereço e outras vezes por vezes acalento como se fosse uma forma de me punir por merece-lo, tomar conta de mim, e
sinto minha barba se molhar, meus olhos se tornarem míopes por causa das lágrimas.
Me sento aqui nesse mesmo canto onde por tantas vezes já me sentei e só sinto a
dor da vida que me foge e que perdi.
Por vezes nem eu sei mais o porquê das minhas lágrimas,
mas sei que são reais, que como a ferida que me cortou por longos meses, me
corta agora emocionalmente e me faz sentir uma dor ainda maior. Me jogando em um canto escuro, sozinho, chorando
como senão tivesse a idade que tenho, como se não fosse um homem feito, sendo tão somente uma criança sem
um colo para se aconchegar e ser acolhido, sem uma palavra de carinho, de
esperança, amor ou somente de proteção e amizade.E tudo que me
veem a mente são lembranças de pessoas que perdi, de pessoas que joguei fora,
de sentimentos que vivi e que sei que jamais irei viver novamente. Por um momentâneo
lapso de razão, sinto que não há mais nada para mim além de um caminho solitário
cercado por um alto muro que encobre o sol que já se põem.
Que lindas palavras... Eu adorei! Há muito não parava para ler um texto tão excelente.
ResponderExcluirContinua... (!?)
Sim, continua... toda a segunda parte já está pronta, prezado(a) Unknown.
ResponderExcluirTudo isso terá um final feliz...Você merece!
ResponderExcluirNão é uma história com final feliz. Ela já foi escrita. :)
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