sexta-feira, 28 de março de 2014

“Já são pouco mais de 5 horas da manhã e o dia já começou a nascer. Os dias são assim no Pacífico Sul durante o verão.
Gosto de ver o sol nascer, o dia começar. Gosto de dormir tarde e acordar cedo. Isso me mostra que minha depressão esta cada vez mais distante de mim. Tento com isso viver mais os dias da minha vida, como se pudesse no final roubar ao menos algumas poucas horas das que me foram reservadas viver. Já perdi muito tempo não vivendo.

Sopra um vento de pouco mais de 11 nós de popa o que faz com quem as Ilhas Marshall fiquem para trás a um ritmo bom.
Esta frio. O sol nascendo começa a roubar calor do ar e do mar, mas não tão frio assim. Basta um agasalho, e estou descalço... gosto de sentir o contato do piso de Teka ainda úmido sob meus pés.
O cheiro do mar é constante, mas também sinto o aroma do meu chá sendo exalado, quente na minha caneca posta bem ao alcance da minha mão direita. Preciso de algo com gosto forte e quente para me despertar de vez. Gosto destes dois aromas.

Os dois Labradores me fazem companhia no deck... sempre me acompanham, isso já há uns 4 anos. Acostumaram-se com o balanço do barco e se sentem mais seguros no mar do que em terra. Hoje em dia já não preciso vigia-los o tempo todo quanto a saltar na água: já aprenderam que não se pode com o barco em movimento; não mais fazem isso.Um esta deitado, dormindo novamente, o outro, esta bem aos meus pés, perto do timão do barco.

Estamos com as velas cheias, mas ainda não icei a balão... isso nos levaria mais rápido, mas também faria o barco jogar mais... mas não temos pressa. Essa é a beleza e a magia do mar, não se pode ter pressa, e ele te ensina que não se precisa ter. A vida tem seu ritmo. “Não apresse o rio, ele corre para o mar”.
Temos ainda pelo menos 20 horas nesta perna até o próximo porto. Isso se o vento se mantiver bom e não mudar pra proa.

Pode-se prever que o dia irá ser quente e com bons ventos... o sol nascendo atrás da popa já dourou parte do céu e essa luz toda em contraste com o azul do mar da Micronésia é um espetáculo. À frente ainda esta escuro, mas atrás já se tem luz. Um espetáculo, que agora, somente me tem como espectador.
Não me sinto só, ao contrário, me sinto vivo.

Nesse momento, somente meu, sinto que a vida flui de forma tranquila. Não me atravessa, não me atropela e nem eu tento freia-la. Sigo na sua marcha. Uma sensação de paz me toma quando olho ao redor e vejo que estou vivo aonde gostaria de estar. Sinto a vida sendo de fato vivida quando me dou conta de onde estou e onde já estive. Sabe-se que esta vivendo quando se adentrou os portões do Inferno, e no alto se leu, em negras letras, os dizeres para “se abandonar toda a esperança vós que entrais”, e se conseguiu sair de lá.
Tenho todas as esperanças.
A paz me toma a alma. Meu coração bate no ritmo das ondas que quebram de modo quase suave contra o barco.

Não existem ruídos, mas somente sons. Os sons que somente um veleiro produz no mar. As velas azuis e brancas sendo cheias pelo vento que as empurra... a água sendo cortada pela proa vermelha do barco, sendo jogada na lateral e espirrando sobre o deck. O ranger inconfundível do barco. Existe uma harmonia entre todos eles. Cada um sabe o seu momento exato de soar.

Na cabine, uma mulher, seminua, ainda dorme.
Seu rosto não pode ser visto, pois seus cabelos estão caídos sobre seu rosto.
Mas me lembro de suas pernas grossas e suas curvas generosas. Podem ser vistas nas nuvens que começam a surgir, como nas brincadeiras de crianças em se encontrar formas nas nuvens.
Somos amigos, somos amantes. Acima de tudo, somos amigos.
No mar se deve estar ao lado de quem se de fato se quer estar.

Lembro-me do meu filhote e a paz que existe em mim nesse momento não pode ser contada ou mensurada, tal como não se pode contar o número de estrelas que agora deixam de aparecer no céu... tal como não se pode mensurar o tamanho do Universo. Este é o limite do meu amor por ele.
Sei que somente suas fotos, seus escritos, suas cartas e e-mails estão por aqui agora, em cada canto do barco, mas sei que ele sempre esta onde sempre esteve: dentro do meu coração e impregnado na minha alma.

Agora mais do que nunca, estou em casa.”

Abril 2006




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