quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Pontes para Argentina




Pontes para Argentina


PRIMEIRA PARTE
ZONA DE CONFORTO EM GOTAS




CAPÍLULO I  

     Já são quase 17h e só agora acordo. Às vezes durmo mais de 20 horas seguidas, às vezes a droga ainda faz efeito, mas cada dia mais, dia após dia, ela faz menos efeito, e cada vez mais preciso aumentar a dose. Agora espero só que o sol se ponha para que eu possa me drogar novamente e simplesmente tentar fugir de tudo isso. Uma fuga desesperada de tudo que sou, do que me tornei por minha culpa, do que poderia ter sido se não fosse minha culpa. Ainda restam alguns minutos de luz para que a droga faça um efeito maior: entendi que durante o dia é mais difícil conseguir me entorpecer do que à noite. Aprendi a me dopar e a ajudar a droga a fazer um efeito maior e mais imediato: realmente a prática leva a perfeição. Desenvolvi um coquetel onde em poucos minutos – por vezes até mesmo esses poucos minutos é tempo demais – me levam pra longe de mim mesmo. Mas não posso dizer que seja um sono confortavelmente entorpecido, como diz a música que ouço sem parar. Antes é um sono ruim, onde quase nunca sonho, algo raro. Um sono pesado, dopado, que quase sempre me traz pesadelos e não sonhos, onde meu subconsciente não fala, grita, e grita tudo aquilo que do que eu tento fugir. No final de forma consciente eu busco o meu inconsciente para me dizer sem que eu peça o que eu não quero ouvir, pois já sei de cor. Ou é pura covardia em viver e encarar a vida.
Mas outras vezes não funciona. Por mais que eu me dope, que eu aumente a dose em níveis perigosos há tanto barulho dentro da minha cabeça que é impossível dormir. São noites de martírio, de culpa, de pensamentos que não fazem sentido a não ser dentro da minha cabeça sem rumo, perdida em tantos caminhos errados. Por fim com tanta droga ingerida, não durmo, mas fico em um estado de latência vagando pela casa, esperando o dia chegar como agora.
     O suicídio me ronda constantemente, lentamente ele se torna um amigo quase inseparável. É a vantagem de não se acreditar em um D’us, em céu, punição, em inferno, em ajuda divina, afinal depois de tudo, seria impossível acreditar que existe um ser acima de tudo que olhe por nós, que poderia simplesmente evitar tanto sofrimento de tantas pessoas e simplesmente não o faz, por puro sadismo ou por um ego tão gigantesco quanto à dimensão que aqueles que nele creem dão, que só ajuda se forem seus adoradores, e quase sempre nem assim: um D’us, novamente como desde sempre pela humanidade, criado com características humanas, o que não faz sentido algum. Mas ainda sim invejo aqueles que acreditam em tudo isso, que se convencem dos seus mistérios, que contam pra si mesmo a maior mentira de todas: a que somos incapazes de entender seus desígnios e caminhos, que somos livres mesmo sendo escravos desse D’us punitivo, egocêntrico, sádico até. Eles conseguem através dessa adoração sem nexo e nem sentido um perdão a si mesmos, um alento as suas dores, uma esperança na qual há muito eu já perdi. Gostaria de ser ignorante, no lato sentido da palavra: não há nada mais libertador do que a ignorância: não se deseja não se busca respostas e quando não as encontra se atribui a sua própria incapacidade de entender um plano maior. São felizes os ignorantes. Aqueles que não viram o que a vida pode de fato dar e, portanto não sofrem por não terem. Padeço da falta dessa tão acalentadora ignorância.
     Como o bêbado do bairro, que mendiga pelas por poucas ruas, que dorme ao relento, o suicídio está sempre presente em minha mente. E novamente como o bêbado mendigo, às vezes passa dias sem ser visto e só após certo tempo se nota que ele não está mais ali onde costumava estar, mas sempre volta, sempre está em sua esquina esmolando, bebendo até cair. Sempre me ronda, indo e vindo. Quase sempre é a saída mais fácil, alguns dizem, mas quase sempre é a saída mais difícil para outros, mas sempre é uma saída. Horas passadas pensando em como fazer, em como seria, no meio mais indolor, mas sempre com pensamentos indo e vindo feito o bêbado.
Nesse exato momento, a janela fechada, já alta madrugada – não sei dizer as horas – já dopado, mas mais uma vez não completamente e confortavelmente entorpecido por tanto barulho dentro da minha cabeça, tento colocar em frases, em palavras que talvez não façam sentido algum para quem um dia as possa ler, o que está me ensurdecendo de tão alto que ouço. Há duas músicas, agora uma que condiz e traduz toda essa loucura e falta de rumo, e uma delas toca sem parar, repetindo como um disco antigo que chega ao fim e retorna ao ponto de início.
     Vago na imensidão do Pacífico, sem leme, com velas rasgadas, solitário mais uma vez, sentido muito frio, mas sem sentir desconforto: o desconforto maior está dentro de mim. Vejo que tenho pouca água, quem sabe dure mais um mês, ou menos, e comida suficiente para menos de dez dias.
Sempre há um começo para tudo, um ponto onde tudo muda, mas raramente nos damos conta disso. Hoje eu sei qual foi esse ponto, esse meu ponto que me levou a me dopar dia após dia, buscando fugir de uma dor insuportável, que aos olhos dos outros não é nada, é algo bobo, passageiro, fraqueza. Hoje sei quando foi esse meu ponto sem volta. Foi quando eu vi a Argentina e ela de vez entrou na minha vida. Será que as pessoas sabem que ela tem predominantemente duas cores? O branco e um azul intenso que traga lentamente como se fossem os olhos da própria Capitu? E ela é assim em suas cores. Ela foi o começo de tudo que hoje desmorona ao meu redor. Você foi uma das poucas privilegiadas – há outro verbo que não privilégio? – a conhecer, e só você sabe do que eu estou falando. Quantas vezes ao longo desses anos todos só você soube ou conseguiu entender o que eu dizia, falava e sentia.
     Mas sou um eterno atrasado, me falta a pontualidade inglesa, sabe bem disso, e me sobra o pagamento por tais atrasos em compreender a tempo o que de fato é importante e único às vezes. Sabe bem o que minha vida teria sido junto dela, ao lado dela, com todo aquele azul e branco, em terras tão distantes e únicas, com sua exclusiva ludicidade que ela era em mim e eu provocava nela como jamais ela, tão pouco eu, havíamos tido.
     Ela foi a única que você de fato quis se aproximar e conhecer, e isso por si só já deveria ter sido um claro sinal pra mim, pois você sempre soube o que era melhor pra mim, sempre soube me mostrar o norte correto e me falar do seu jeito tão único, suave e doce, que eu deveria corrigir o rumo da proa. Ademais, você sempre se cercou do que há de melhor. Mas cego por essa doença que já faz parte do que sou há 20 anos, ou simplesmente cego pela imaturidade, pelo ego, pela falta de empatia aos sentimentos dos outros eu não entendi, eu não enxerguei que era junto da Argentina que minha vida deveria existir, e acima de tudo, viver e não sobreviver como faço agora rodeado pelo meu constante amigo ceifador de vidas e aliviador de dores da alma, ainda que eu não tenha uma, agora nessa volta final de mais uma perfeita volta da vida.
     Eu, você, sabemos o quanto ela tentou, o quão ela lutou para que eu enxergasse isso, mas nós dóis sabemos o quanto eu desprezei cada esforço, cada palavra que ela me disse, e o quanto eu a fiz sofrer. Nem mesmo Dante em sua Comédia teria tido tanta inspiração para descrever toda dor e infortúnio que eu a fiz padecer, e ela por anos, de forma estoica, suportou e continuou tentando. Não sou hipócrita. Acredito que seja um dos poucos defeitos que me faltam, então desta forma, você sabe bem, que não se tratava de testar o limite da força do amor dela por mim, como sempre faço a fim de saber se é real ou pura ilusão. Sei o que fiz: menosprezei, não cuidei do jardim que ela tanto tentou cultivar, não valorizei a única razão que se há para viver, o amor, o amor que ela sentia por mim e sentia de forma incondicional. Ela me viu, ela me enxergou e viu quem eu de fato era, e ainda sim quis ficar e quis pagar o preço para estar comigo, mas fui mais forte, sendo mais fraco, e consegui destruí-la e destruir esse amor. Não devo pagar por isso? Sabe que sim! Ainda que ela mesma jamais tenha me cobrado tal fatura.  Mas a vida – aos 40 anos já é hora de saber algo além de me vestir, me barbear sozinho – e sei que a vida sempre cobra, ainda que sob e sobre a forma de outras pessoas. Fui míope, fui mais, fui cego a tudo que a Argentina teria sido na minha vida, e o que ela já era na minha vida. Sou digno e não me eximo de pagar por isso, ainda que me custe à própria vida. Dante estava errado quando criou sua obra. Virgílio não precisava vagar literalmente em busca de Beatriz que se encontrava no paraíso, tão pouco precisava ter passado pelo purgatório, onde aqueles que pecaram podem ter uma chance de terem seus pecados expiados, remidos e se tornarem dignos de entrarem no paraíso. Mas de certa forma acertou ao criar o inferno. Sim, ele existe. Não como querem os crentes, sejam eles de quais religiões forem. Ele não é formado como descreveu Dante por nove círculos descendentes, onde a cada círculo mais abaixo a dor e o sofrimento aumenta de forma exponencial, de acordo com o merecimento do pecador. Não é necessário desencarnar para se adentrar ao inferno e tão pouco são somente nove círculos descendentes.  Em vida se entra no inferno e dentro dele há dezenas, centenas e talvez milhares de corredores sem fim onde a própria consciência se torna o inferno de cada um. Dentro dele, incapazes de escapar, pagamos pelo o que fizemos ao outro, a nós mesmos, ainda que em raras vezes não tivéssemos como não pecar, errar, mas hoje, e tão somente hoje, sei que sempre há como não deixar que o jardim que alguém tenta cultivar, que o amor que alguém nutre, seja maltratado, relegado, desprezado até. Mas novamente chego atrasado, um atraso de anos, e o tempo ainda que possa ser parado pela gravidade, não pode ser por nós.
Dentro da consciência, dos corredores infinitos que nos perdemos, que nosso subconsciente nos traz a tona durante o sono – sono esse falso, feito através de drogas cada dia em doses maiores – e nela que vivo aprisionado, me torturando de forma quase masoquista e eternamente judaica, pelo o que fiz, buscando em cada lembrança guardada e até mesmo escondida, todo o mal que causei a ela. Não há perdão.
E foi por tamanha dor em ver o que havia perdido me dando conta lentamente, a conta gotas o que havia de fato feito a alguém que nunca em momento algum teve uma única palavra, uma única ação de rancor, raiva, desprezo ou agressividade contra mim, que passei a me drogar, buscando desesperadamente dormir e abafar essa dor, esse remorso.
Não serei sutil e tão pouco hipócrita em não admitir que seja sim um viciado e cada dia me vicio mais e mais, buscando com isso fugir da minha realidade, buscando fugir de pensamentos que me atormentavam e como um ciclone giravam sem parar dentro da minha mente, num perfeito surto límbico me prendendo a fatos, realidade, pensamentos, devaneios que não me deixavam saída. Assim os anos foram passando, e noite após noite, raras foram as que não recorri a essa droga para simplesmente parar de pensar, você sabe disso.




Capítulo II

Não sei se te contei – cada vez mais minha realidade se mistura a um surto dopado onde por vezes não distingo um do outro e minha memória falha – que dias atrás acordei tendo a porta esmurrada.
Dopado, não entendia o que se passava. Tateando tentei acender a luz do quarto, mas não encontrava o interruptor. Nu sem me dar conta de tal fato, finalmente abri a porta e uma luz de lanterna foi direcionada para meu rosto, sobre meus olhos ainda semicerrados, dopados, sem entender se era sonho ou a realidade. 



CAPÍTULO III

Segundo o médico, pode ser que preciso ser operado. Ele mesmo disse que nem iria fazer o exame necessário ali no consultório, pois eu não iria suportar a dor, mas nitidamente a ferida era grande e se estendia corpo adentro. Me perguntou sobre várias coisas, sobre minha alimentação, etc... mas nada do que eu lhe disse pra ele seria motivo de tal ferida, tão pouco havia motivos aparentes para ela. Sei que quase sempre é insuportável a dor, e nem deitado ou sentado, ou até de pé consigo alívio. Temi que pudesse ser algo muito mais grave do que havia pensado quando entrei no consultório depois dele me falar que se a ferida não cicatrizasse seria necessário uma cirurgia e uma biópsia, pois poderia ser algum tipo de câncer. Me veio meu pai à mente. Nunca fumei, nunca bebi, tirando as vezes que nós dois resolvemos tomar algum porre de tequila, onde eu sempre acaba apagado na terceira dose, mas até lá, ríamos mais do que o de costume, um do outro, dos outros, de nós mesmos. Sempre me lembrava que segundo a Argentina, marguerita era bebida de mulher, e que eu deveria  parar de tomar em público, pois meu jeito já me condenava e com a bebida seria então uma confissão absoluta de viadagem.
Me prescreveu uma medicação pra dor que passei a tomar diariamente, que me aliviava por algumas horas, mas que era insuficiente, e dia após dia a ferida persistia e sangrava. E também me indicou uma melhor alimentação, mas pensei comigo mesmo que já tomo tanto cuidado com o que como ou não. Foram nove meses, quase exatos de uma dor quase insuportável, rezando para que morfina pudesse ser vendida sem tanta burocracia e que assim eu pudesse suportar o corte que me fazia literalmente sangrar diariamente, quase com hora marcada. Sei que se lembra o quanto sofri, pois me lembro o quanto tentou cuidar de mim.
Mas da mesma forma que a ferida que sangrava com hora marcada, que me impedia de andar, e até mesmo de me deitar veio, se foi. Sem explicações, sem qualquer outro tipo de tratamento médico ou até a temível cirurgia e o receio de vir a ter câncer que havia levado meu pai com apenas 52 anos. Não me lembro quando foi que acordei e não senti mais dor e vi que não havia mais sangramento e tão pouco a ferida que me rasgava de fora para dentro, sei que ela se foi. Por fim entendi o que se passava comigo. Você me conhece tão bem, sabe que sou um menino ainda na fase dos 6, 7 anos que a tudo pergunta o porquê. 
Por vezes o corpo nos faz sofrer com doenças criadas por ele mesmo, pois a dor, ainda que in casu fosse quase insuportável e por vezes insuportável, para nos poupar da dor que existe em nossas almas, em nossa mente.

Me pego chorando, como agora, com coisas simples, com lembranças pequenas, com detalhes insignificantes. Um choro de dor, que não busco mais conter. 
Sim, já vivi mais da metade da minha vida, mas ainda assim o choro que sinto e sofro é de uma criança que foi deixada para trás por sua mãe em algum lugar escuro, desconhecido, completamente só, mesmo em meio a essa multidão que passa por mim, mas sem me notar. Há uma dor que é ainda maior do que a que antes a ferida aberta e nunca fechada nem cauterizada provoca. Nesse momento não tenho nada além de dor, lembranças, remorso, solidão e uma verdade: de que estou só. Completamente só, e nem mais você que jamais pensei que um dia pudesse me deixar, se foi.
Deixo essa dor, esse sofrimento, que não sei se mereço e outras vezes por vezes acalento como se fosse uma forma de me  punir por merece-lo, tomar conta de mim, e sinto minha barba se molhar, meus olhos se tornarem míopes por causa das lágrimas. Me sento aqui nesse mesmo canto onde por tantas vezes já me sentei e só sinto a dor da vida que me foge e que perdi.


Por vezes nem eu sei mais o porquê das minhas lágrimas, mas sei que são reais, que como a ferida que me cortou por longos meses, me corta agora emocionalmente e me faz sentir uma dor ainda maior. Me jogando em um canto escuro, sozinho, chorando como senão tivesse a idade que tenho, como se não fosse um homem feito,  sendo tão somente uma criança sem um colo para se aconchegar e ser acolhido, sem uma palavra de carinho, de esperança, amor ou somente de proteção e amizade.E tudo que me veem a mente são lembranças de pessoas que perdi, de pessoas que joguei fora, de sentimentos que vivi e que sei que jamais irei viver novamente. Por um momentâneo lapso de razão, sinto que não há mais nada para mim além de um caminho solitário cercado por um alto muro que encobre o sol que já se põem.