sexta-feira, 28 de março de 2014

Quase 19h, mas ainda há luz, mesmo que o dia tenha sido nublado e agora o que vejo são nuvens baixas. Nessa latitude, na costa do Brasil, o horário de verão estica os dias e encurta as noites. Às vezes acho que isso seja bom, mas agora se tornou um tormento suportar tantas horas até poder chegar a noite e dormir e esquecer. É tudo que quero gostaria nesse momento, esquecer, apagar da minha memória cada detalhe, cada hora, cada toque, cheiro e sentimento, mas todos eles insistem em viver aqui dentro, insiste em tomar cada parte da minha alma, cada minuto dos meus pensamentos. Tenho não só uma vela avariada, mas muitas partes já além de gastas, estragadas pelo tempo, pelo mar que não perdoa, não se intimida, não se apieda. Não é mais o mesmo barco que há um tempo se lançou ao mar e nele levava uma vida inteira no seu pequeno interior, em forma de lembranças e fotos do meu filho, dois cachorros fieis e sempre vigilantes, e uma mulher de pernas grossa, cabelos longos, formas generosas e desenhadas como ondas do próprio mar. Tudo se perdeu em muito pouco tempo, mas talvez tenha levado tempo demais até que tudo tenha se perdido, se deteriorado, destruído até, afinal, nada mais relativo do que o tempo.
Sigo só agora. Há tempo os dois labradores morreram. Há tempos minha inércia, fraqueza e covardia me distanciaram do meu filho, talvez de maneira definitiva, com uma distância maior do que a do Oceano que acabei de cruzar e deixei á oeste. Sou o único responsável por essa perda e em vida pagarei por isso: não morrer, mas continuar vivo para se lamentar e sofrer pelos erros.
Estou cansado. Não um cansaço físico, mas uma falta de forma em continuar, em seguir adiante, mesmo sem saber pra onde se tivesse forças para seguir. Espero mais alguns instantes até poder descer e tentar dormir, ou simplesmente parar de pensar. Longas horas de luz e curtas horas de noite.

Na minha mente só existe o eco da sua voz forte, grave, marcante. Em mim continuou a sua falta constante a cada hora do dia: ela não mais dorme semi nua ou quase sempre completamente nua como fazia envolta sempre em uma manta verde, na nossa cama, onde por tanto pouco tempo ela esteve. Mas sigo vendo suas formas, suas pernas grossas, seus cabelos longos, seu sorriso logo ao acordar e sua voz que trazia vida e sentido para tudo que era a minha vida. De alguma forma ainda espero todas as vezes que desço encontra-la já deitada adormecida... mas a verdade sempre é maior do que os sonhos e ilusões: ela se foi.
Percorri 20 anos, milhares de milhas para encontra-la, sem me dar conta que era ela quem eu sempre busquei e procurei. Estive em todas as partes e jamais me senti bem mais do que uma hora, às vezes bem menos, desejando ir logo embora, mas sabia que buscava alguém. Jamais pude imaginar que seria ela, justo ela. Mas era, é.
Olho para o alto e vejo que a noite será de vento forte e ondas altas, isso irá apressar a viagem, mas não tenho para onde ir, não tenho para quem voltar, não preciso de velocidade.
Nada mais faz sentido quando, ainda que por uma fração de tempo da sua própria vida, se teve tudo que se desejava ter: é impossível buscar algo novo quando já se teve aquilo que a vida poderia lhe dar de melhor. Agora me contento com as lembranças, com o sonho vivido, com as poucas horas passadas ao lado dela. Por vezes me veem um sorriso quando penso que ela esteve comigo, que pude tocar suas mãos, seus cabelos, seu corpo, sua boca... isso de certa forma me alimenta, mas infelizmente cada dia mais me nutre menos e menos.
Finalmente a noite toma conta do horizonte, e sem estrelas e com lua minguante e chuva, não vejo nada além de poucos metros de mim mesmo no convés. Desço e me deito na esperança de dormir logo, de logo parar de pensar, lamentar. Mas meus pensamentos não conseguem deixar meu corpo descansar. Eles insistem em viver, em girar como um turbilhão dentro da minha cabeça fazendo meu corpo simplesmente se cansar ainda mais, fazendo minha alma doer e meu coração sangrar. Ele já sangra há mais de duas luas cheias, e não sei quanto mais posso sangrar.
Adormeço exausto de pensar, de tentar entender tudo o que se passou, lamentando por todos os minutos em que eu pude tocar em suas mãos e não o fiz, em todas as vezes em que poderia te-la beijado e não o fiz, em todas as vezes que poderia ter tido seu corpo e não o tive. Lamento não por não ter feito tudo isso, pois fiz, a beijei, a toquei, ouvi a sua voz alta e grave, toquei em seus cabelos e em seu corpo, tive inúmeras vezes suas pernas como sempre sobre as minhas, mas agora me parece que poderia ter feito mais, tido mais dela... tempo, a maldita dimensão que nos tira lentamente o pouco que temos e nos faz lamentar pelos segundos que nos foi dado e tirado.

Acordo com o movimento violento do mar jogando o que resta do barco contra as ondas. Chove forte e tudo é escuro como o bréu.
Me lembro dela novamente deitada, suas pernas grossas, seus cabelos longos, e o verde esmeralda de seus olhos que brilhavam logo pela manhã quando me olhava: naquele instante, naquele exato instante quando ela acordava ao meu lado, eu vivia a vida da forma mais plena, pois era ela quem estava ali: nada me faltava, nada me sobrava.

Sigo rumando cada vez mais subindo a costa, sem rumo, sem um porto para onde ir, para quem ir.
Nessa madrugada fria, de chuva e tempestade, a noite escura é sutilmente cortada pela luz no alto do mastro, e pela luz de popa onde ainda se pode ler algumas letras que a tinta resistiu do nome do barco, já não se pode ler seu nome no barco, só restaram lembranças e saudade.

Não tenho mais nada.

Janeiro 2013

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